terça-feira, 2 de junho de 2009

O Chamado, Parte II

Alguns segundos se passaram. O mundo continuava girar, a gravidade ainda mantinha tudo em seu devido lugar. Ele ainda estava lá, sentado naquela beirada. A taça vazia e a garrafa de vinho repousavam próximas a ele. Teve que ter certeza disso, pois sentiu que naquele momento o seu mundo ia se desfazer bem na sua frente, denovo. Quase caiu quando atendeu ao telefone. Nada disse, e ninguém respondeu do outro lado, pois antes que pudesse dizer algo, ouvira a música.

Era Stand by me, dos Beatles. Ficou lá, ouvindo a música e se lembrando de tempos antigos, de quando tudo era mais fácil. Fora pego de surpresa e estava em transe. Lembrou de quando era criança e via Conta Comigo na sessão da tarde antes de ir jogar bola com os amigos. Lembrou de amigos que partiram e das aventuras que tivera com eles, lembrou de seus amores juvenis, e seus fins trágicos. Recordou de sua primeira vida. Era assim que ele via essa época, como outra vida que vivera há tanto tempo, uma vida tão distante que lhe parecia um sonho. O vinho cumpriu seu papel e o ajudou a se afogar em sim mesmo, viajou para no tempo para encarar o que se passou.

Fechou os olhos quando as lágrimas se libertaram de sua prisão, e foram deslizando livres pelo rosto dele. Poucas pessoas conheciam essa parte da sua lembrança, e só uma podia relacionar tudo fazendo ele se sentir daquele jeito. “Alô?”, disse uma voz feminina do outro lado da linha. A voz soou tão suavemente, se sentiu acordando de seus devaneios. Então teve certeza de quem era. Só uma pessoa conhecia tanto sobre ele.

“O que você quer?”, respondeu ele. Sua voz demonstrava a indignação que sentia. Sabia que fora desarmado daquele jeito por algum motivo, e seja qual fosse não iria se deixar levar. Enxugou as lágrimas e se serviu da quarta taça de vinho. Estava de volta a seu presente. Uma noite fria e solitária. Vinho e música. Problemas e decepções.

“Quero conversar”, ela disse. “Se eu lembro bem, você sempre atendeu quando te ligavam de madrugada. Você dizia para todo mundo que nunca desligava o telefone por isso. Porque se alguém precisasse de algo você estaria lá. Hoje sou eu quem precisa falar com você, vai me ouvir?”

Era verdade, muitas vezes recebia ligações de amigos e conhecidos que precisavam conversar com alguém, e por duas vezes atendera a desconhecidos também, que por uma coincidência tinham ligado errado para a pessoa certa. Mas ela era a responsável pelas feridas que mais sangravam.

“Não posso fazer isso”, respondeu ele. “Você sempre me pede mais do que posso fazer”. Lembrou de outra música, Piano Bar, dos Engenheiros do Havaí, eram os versos que definiam sua relação com ela. Ele dando muito e pedindo pouco. “Já te dei muito, não vou dar mais nada, já chega.”.

Ele sentiu sombras cobrirem seu coração quando ouviu o choro do outro lado da linha. “Por favor, estou tão sozinha, preciso falar com você e você precisa me ouvir.”, ela suplicou. As palavras dela sempre tiveram uma forte influência sobre ele, mas hoje não se deixou levar, sofrera demais por ela. “Eu não posso”, foi só o que conseguiu dizer. Ouviu-a suspirar, sabia que essa não seria a última vez, porque ela nunca o deixaria, sempre voltaria em outras noites para tentar se fazer ouvir. Hoje ela tentou chamá-lo pelo telefone, tentando ludibria-lo, aproveitando que estava bêbado para iludi-lo. Hoje ela perdeu, amanha não sabia qual seria o seu artifício. O que ele também não sabia era que seria cada vez mais fácil se negar. “Até logo”, ela disse, com uma tristeza cortante, e desligou.

Ele então se levantou e foi deitar no chão frio. Nas últimas semanas se acostumara com o frio. O telefone voltou a tocar música. L`aventura, Legião Urbana, segunda música do Tempestade. “Mais uma vez apropriado”, pensou ele. Não se sentia melhor por ter conseguido dizer não para ela. Talvez fosse melhor viver com o pesar dela dentro da sua cabeça, mas era definitivamente mais fácil dormir assim. Dormiu quando a música ia acabando com seus versos finais.

4 comentários:

  1. Toda vez que leio este texto, os olhos se enchem de lágrimas... Não sei explicar o porq, talvez eu seja apenas uma boba, mas tudo bem, não me importo.
    "Agora fecho os olhos e vejo esse rosto, levanto a mão para tocá-lo, e ainda consigo sentir. Não posso ver lágrimas, apenas sinto o cheiro de que elas estiveram lá. É um olhar tão triste, tão duro... Os dedos deslizam na esperança de causar um possível sorriso, mas ele não vem... Derepente tudo está ficando apagado, o peito doí por não ser capaz de mudar esta cena... Então abro os olhos e tudo se torna escuridão novamente."

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